Contos Interminados - O Diário de Izzi: O Quarto

Um quarto bagunçado
O Quarto (desenhado pela Wombo Art)

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CONTOS "INTERMINADOS"
O DIÁRIO DE IZZI
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Olá a todos. Hoje irei postar o segundo fragmento dos quatro que compõe um conto incompleto - que talvez um dia eu complete/ talvez não.

Como já disse no primeiro fragmento, o Conto chama-se "O DIÁRIO DE IZZI". E a ideia original era que esta história fosse a base para um jogo de RPG Educativo.
Porque eu o estou postando já que ele está incompleto? Você talvez pergunte - novamente!

A resposta é simples - como foi da primeira vez que você supostamente perguntou; é apenas um exercício literário. E convido a todos que gostam de escrever a participarem de Ratos Letrados com suas crônicas, devaneios, poesias, desenhos, etc.


A Arte é um Esporte, e como um esporte ela precisa ser praticada, mesmo que ela não tenha uma finalidade - como a crônica que vou postar hoje - ou um começo, meio e fim.
A Arte é uma Ação. Então vamos nos mexer...

---Esta história foi elaborada por Wolfgang Fênix e Lucy (integrante do Canal Let's Play).---





PARTE 2 - O QUARTO

...O quarto parecia mudar toda vez que eu fechava e abria os olhos...

...Ora era o quarto no qual eu havia aprendido a me isolar do mundo desde o dia em que provoquei o maior desastre de minha vida...


...Ora era o “quarto” no qual o sub-mundo que criei em minha cabeça, ou melhor, o sub-mundo que ajudei meu avô a criar, e este quarto parecia ganhar autonomia. O aspecto do “quarto” era de fato muito similar ao meu quarto, só que uma aura de “é melhor não confiar que sou o seu quarto” me mantinha alerta como se eu soubesse que aquilo tudo era apenas um sonho. Bem, é claro que “apenas um sonho” não é uma classificação justa quando se está falando do sonho mais real que você poderia ter. Em todo caso foi naquela noite em que eu percebi; no “quarto”, que as coisas que nos rodeiam no mundo possuem mais significado do que muitas vezes nós nos permitimos perceber. Estes significados podem, acredite você ou não, revelar verdades que podem por em cheque a nossa própria noção de mundo, nos fazendo questionar se afinal: vivemos ou não em um conto de fadas? Um conto de bruxas? Ou um limitadíssimo conto de “trabalhar, comer, dormir e repetir todas as anteriores sem direito a questionar o porquê”, sendo este último o provável pior conto para se viver! Ou ainda um “muito bem elaborado” conto de “tudo isso junto”...

Claro que para poder ver em que conto você está vivendo você precisa observar os significados que as coisas do mundo “mostram” por uma perspectiva “especial”, decifrando assim as várias facetas ilusórias que o mundo nos apresenta... Mas não! Você não precisa acreditar em mim, afinal você pode estar suspeitando que eu possa ser apenas uma peça folclórica, uma ilusão, uma miragem apresentada a você para que seus atos sejam influenciados numa direção que seja “interessante” para um “algo maior e autônomo”, extremamente manipulativo e frio, que não se importa com outra coisa senão a brilhante atuação no papel ao qual você e muitos e muitos outros foram “destinados” a realizar em um conto qualquer! Mas se você acha que pode dar um pouco de crédito para alguém suficientemente letrado (apesar de suspeito) para registrar sua vida para as futuras gerações como eu, então lhe apresentarei minhas memórias sobre o “quarto” no qual dormi naquela noite...

...Ou melhor; o “quarto” no qual eu “acordei” naquela noite...

Aquela sensação de “não-sei-se-estou-dormindo-ou-acordado” é a que melhor descreve o estado no qual eu me encontrava durante aquela noite, bem... Na verdade já era madrugada, já havia passado da meia noite quando me deitei. “Será que aquela garrafa de vinho teve alguma participação nisso tudo?”. Bom, essa foi apenas uma das muitas perguntas que assombraram minha mente no dia seguinte! Mas... Voltando para aquela madrugada...

Quando meus olhos se fechavam eu sentia como se estivesse acordando para uma realidade alternativa: era um lugar assustadoramente familiar, mas com algum aspecto invisível e desagradável que o tornava suficientemente distinguível do lugar “original”. Ora eu estava em meu quarto; deitado e dormindo, ou pelo menos tentando dormir, então meus olhos se fechavam e quando os abria novamente eu estava em outro “quarto”; muito similar ao meu, escrevendo e rabiscando símbolos em meu caderno, folheando livros e arquivos que eu mantinha em segredo do resto do mundo.

Meu quarto verdadeiro era grande para os padrões arquitetônicos da Vila e certamente devia ter sido, em outra época, usado como um depósito de grãos ou algum outro tipo de produto agrícola. O assoalho de madeira era bastante surrado; arranhões e outras marcas formavam um conjunto de cicatrizes que se espalhavam por todos os lados, assim como se espalhavam por todos os lados o cheiro de “madeira” e “vida no campo” que a minha casa como um todo exalava.

Afora a humilde cama de algodão, palha e muitos pedaços de tecido costurado; havia em meu quarto uma escrivaninha muito bonita, cor de tabaco muito lustrosa, com quatro gavetas frontais. Havia também um armário no qual eu guardava meus livros e cadernos, eles sempre estavam perfeitamente organizados e limpos, a razão para isso não era meu talento para a organização doméstica que, aliás, nunca fez o meu feitio mesmo, mas sim o fato de que eu os usava com freqüência suficiente para evitar o acumulo de pó e teias de aranha. Claro que eu não era um completo desleixado, mas meu dom para organizações metódicas só iria despertar mais tarde, quando a necessidade se apresentasse. Uma arca enorme também fazia parte da minha mobília. Ela era muito bonita, apesar de simples e sem adornos extravagantes.

Além dos móveis principais já citados, podia-se apontar em qualquer parte algum item menor como, por exemplo, um quadro muito colorido na parede, uma luneta presa a um suporte, um busto de pedra quebrado jogado a um canto, entre outras minúcias. Até os entalhes no batente da janela valiam à pena ser observados. Em uma visão panorâmica do quarto, seria possível vê-lo como um misto de quarto e depósito de algum colecionar, com um gosto muito diversificado e fora do comum.

A maior parte dos artigos espalhados em minha fortaleza havia pertencido ao meu avô; como a escrivaninha e o armário, mas além da mobília havia uma porção de outros “artigos proibidos” que também haviam pertencido ao velho e que eu mantinha em segredo nos esconderijos do quarto e outros lugares que outrora meu próprio avô havia me apresentado secretamente. Eu havia batizado esta singular coletânea de artigos como “O Fantasma do meu Avô”... Bem, na verdade meu próprio avô havia se referido a sua “obra” dessa forma em um dos seus diários e eu apenas mantive o nome por ele escolhido e por isso não posso levar o crédito por este título tão interessante...

Era através do “Fantasma do meu Avô” que eu “conversava” com ele de certa forma! Era triste, mas era a única coisa que eu podia fazer para amenizar a saudade e o sentimento de culpa; manter o meu avô o mais vivo possível em minha vida através de todas as lembranças e recordações que eu pudesse reunir dele...

Em uma das transições entre o quarto e o “quarto”, eu vi o velho sentado de costas para mim na escrivaninha em frente à cama. Ele escrevia alguma coisa enquanto falava sobre assuntos desconexos. Às vezes parecia que ele falava qualquer frase que pulasse em sua cabeça, como se estivesse entoando encantos:

...“o Esquilo quer comer a Uva, mas a Espada o fere” “a Sela arrebata o Tatu, uma sentença de morte irrevogável” “só há um jeito de um Ovo fazer nascer um Urso e o revide se dá”, “a Vaca tem uma segunda chance, pois sua Igreja a perdoou” “mas outra Vaca veio de um Ovo e isso foi inesperado”, “o Navio do além traz um Ovo para fazer nascer um Sapo ajudado por sua Igreja” “mas o grande trunfo nos grãos foi a Sela ter arrebatado o Tatu, isso compensou o Esquilo ter sido esmagado pelo Mamute”... “e a Águia; assim como todos os outros, só pesou um grão em minhas mãos”...

Era uma conversa sem nenhum sentido. Aliás, não se pode dizer que se tratava de uma conversa, uma vez que eu não me preocupava em tentar manter um diálogo com meu avô, falando eu mesmo para mim próprio:

“Você não pode estar aqui vô!” “Eu sei que não...” “Queria que isto aqui fosse real e que você realmente estivesse aqui nesta escrivaninha preparando minha tarefa para o dia seguinte enquanto conversássemos sobre filosofia, sobre a Vila, sobre a praça, sobre tudo...” “Mas, isto é um sonho não é mesmo? Se bem que, tudo parece tão real... Será que isto é mesmo um sonho?”.

A imagem de meu avô estava extramente real ali naquele estranho “lugar”, no entanto eu sabia que havia algo de fantasmagórico no aspecto de meu avô, eu apenas não conseguia distinguir o que era. Mas fantasmagórico ou não, eu não podia ter medo dele. Isso eu não podia; eu cresci ao lado daquele homem velho e cheio de sabedoria, paciência e bondade! Conhecia-o bem demais para ter medo...

Houve um momento, no “quarto” em que meu avô começou a formar sentenças que faziam algum sentido, ao menos para mim:

“Quando estiver perdido meu neto, vá para a praça, ela é ótima para mostrar um rumo a quem está perdido...”. “Você não vê um bolo olhando para os ingredientes separadamente...”. “Você não vê uma torta olhando os ingredientes isolados...”. “Olhando os grãos de café, o açúcar, a água e a fogueira isoladamente você não é capaz de ver uma boa xícara de café...”.

Eu me assustei com um movimento abrupto de meu avô, que virando-se para mim com um caderno na mão direita começou a falar auto e em tom de urgência: “Para falar com os mortos é preciso primeiramente aprender a ver onde os fantasmas destes se escondem, é preciso decifrar o sistema que os mantém vivos, que os mantém em contato com nosso mundo...”.

Meu avô se levantou e com seus movimentos chamou minha atenção para o caderno em sua mão. Ele colocou o caderno aberto sobre a escrivaninha dizendo: “aqui está sua tarefa para o amanhecer...” “quando a chegada do sábio for anunciada pelos sinais da profecia a sua jornada se iniciará...”. Então ele se aproximou de minha cama e dizendo um “até breve” mergulhou de baixo dela cantarolando alguma coisa ininteligível e desapareceu tão instantaneamente quanto havia surgido...

Então o “quarto” começou a perder a forma de quarto como se estivesse se dissolvendo em outra paisagem, cada vez mais medonha. Minha cama desmoronou como se estivesse sendo engolida por um buraco escuro, ou pior, como se o próprio Leviathan a estivesse engolindo, tragando-a; e a mim, para a imensa escuridão de seu estômago sem fim...

Eu não queria sentir medo, afinal, sabia que aquilo não podia ser real. Mas o frio em minha barriga, o suor em minha testa e a sensação de queda eram sinais de que mesmo um “sonho” podia ter efeitos drásticos no mundo real.

Por fim eu percebi que o medonho aspecto que o “quarto” estava tomando representava o maior pesadelo que eu tive na vida, aliás, um pesadelo que era bem mais real do que eu queria admitir para mim mesmo, este pesadelo tinha endereço e tudo o mais na Vila...

Ali... ...naquele “quarto” medonho...

Eu pude compreender qual era o aspecto bizarro que me impedia de sentir conforto em um ambiente tão familiar: os móveis pareciam ter desaparecido lentamente naquele meu sonho entorpecente, os objetos familiares, as lembranças de meu avô e tudo o mais cederam lugar para uma sala vazia e fria, com apenas um leito de palha e um vulto tremulo e distorcido como um espectro; ambos jogados a um canto preenchiam aquele lugar. Não havia uma janela sequer, até mesmo as portas pareciam não conhecer aquele lugar, apenas uma espécie de alçapão no teto permitiria entrar e sair de lá. Só havia um nome para aquele lugar de pesadelo, e este era: “A Sela”...

Aquilo era de mais para mim, “o que minha mente tinha na cabeça?”, esta era a pergunta que eu queria fazer, pois a imagem que eu presenciava era realmente de cortar o coração e de fazer a culpa corroer minha alma...

“Como este povo pode ser tão idiota para tratar um homem SÁBIO como meu avô daquela forma! Tratá-lo como um LOUCO e joga-lo na Sela”... “Aquela maldita Sela”...

Estes foram os meus pensamentos protestantes e recorrentes no período que seguiu a catástrofe que provoquei em minha infância...

O pobre vulto “na Sela”; que devia estar trêmulo de fome ou de doença se revirou e começou a choramingar. Eu devia mesmo ter uma mente masoquista, pois não é possível transmitir a você o quão doloroso foi ouvir aquele vulto; que olhando para o vazio disse:

“Meu neto”... “Cuide do meu neto”... “Não esqueça que o Sábio vai chegar meu neto querido”... “Não esqueça”... “Os sinais! Observe os sinais”... “Eu me destinei a este fim para que você estivesse livre para esperar a chegada do Sábio”... “Quando ele chegar ouça-o”...

Com o coração dilacerado pela culpa eu me questionava se aquela história de “Chegada do Sábio” não era mais uma das mensagens enigmáticas de meu avô... E como eu poderia saber quando um “Sábio” chegaria? Meu avô era mesmo um homem genial! Ele sim é que era um sábio, e pensar que pessoas ignorantes tendem a rotular pessoas como meu avô de “Loucos”, “Malucos” e até “Hereges”... Meu avô é quem deveria esperar a chegada de quem quer que fosse... E eu? Eu deveria ir para “A Sela” e não meter mais ninguém em confusão, ao menos este era o meu pensamento naquela época...

Eu cheguei a pensar naquele momento que nunca entenderia aquela história que meu avô martelou por tanto tempo em minha cabeça, no entanto...

Parado ali, naquela “Sela medonha”, observando a figura espectral que simbolizava para minha mente doentia o meu pobre avô sendo injustiçado por um povo ignorante, eu tive meu momento genial, se um “Sábio” havia de chegar como meu avô dizia, ele certamente não seria tratado como um “Sábio” assim como meu avô não havia sido...

Também pensei que “se eu fosse seguir em frente com aquela história” eu precisaria conhecer a “profecia do sábio” por completo, e a única pessoa para quem eu poderia perguntar sobre isso era a mesma que martelou aquela história em minha cabeça durante a minha infância, e já que essa pessoa havia sido levada por culpa de minha infante ingenuidade para a noite eterna só haveria uma forma de falar com ela...