Somos todos desafiantes; pretendentes ao posto de campeão. Sim, todos nós somos lutadores ambiciosos. Isto talvez nos defina mais como humanos do que sermos chamados propriamente de "Sapiens"; sábios. Não; não somos um bicho sábio. Antes de tudo o mais somos bichos beligerantes. Estamos em guerra com o mundo, com as forças da natureza, com nossos irmãos, com outros bichos e quando tudo está em paz à nossa volta entramos em guerra com nós mesmos. Por isso inventamos o esporte, pois quando não mais podemos lutar de verdade nós nos pomos a fazê-lo mesmo que de brincadeira. Brincadeira? Tolice essa que acabo de escrever. Afinal, não brincamos de lutar: lutamos enquanto brincamos; isto sim, pois lutamos a sério: brincamos é de fingir que não levamos a sério. Todos nós praticamos; de uma forma ou outra, um esporte. Seja em um ringue, na água, em um campo ou montado sobre uma bicicleta. Seja atrás da tela de um vídeo game, em um playground, em um parque, na frente de um tabuleiro ou até mesmo na frente de uma planilha, de um prompt ou de um monitor abarrotado de letras e números, com uma luva na mão, um taco, um arco, um guidão, com uma caneta ou um pedaço de giz: lutamos. Sim, lutamos contra tudo, pois somos bichos guerreiros.
Eis o espírito que me levou a escrever sobre um anime muito querido por mim e que eu assisti há já muitos anos. Falo de Hajime no Ippo, um animê de boxe baseado em um mangá homônimo e que está agora disponível na Netflix (o rei dos streamings, que está agora às voltas que polêmicas envolvendo seu modelo comercial... mas isso é outra história).
Mas, antes de falar diretamente sobre o anime em questão, eu gostaria de discorrer um pouco sobre a minha opinião sobre este gênero de animação que chamamos por aqui de anime, animê e também de desenho de japonês...
Anime como Arte
Carrego comigo, desde a infância, a forte noção de que desenhos animados possuem a capacidade de ensinar aos seus expectadores. Sim, desenhos são capazes de transmitir valores e de mudar a forma como pensamos sobre alguma coisa. E não estou me restringindo apenas a desenhos educativos. Falo de modo geral.
Isso aconteceu muito comigo na infância e posso dizer que, mesmo adulto, me surpreendi com a capacidade que as animações possuem para ensinar. Desse modo, não posso dizer que animações não são uma expressão artística legítima, porque são. E acrescento que são muito válidas. Claro que, é preciso que se considere como em tudo, a qualidade e a abrangência de cada obra, pois certamente haverá aquelas melhores e aquelas piores. Não raro uma confunde-se com a outra. Algo difícil de definir. Talvez até impossível. Portanto, a avaliação de cada uma é algo para a qual a regra só possa ser encontrada na circunstância.
Mas isso não é porque estou falando de animações; é porque estou falando de arte.
Tendo dito isso, eis o motivo pelo qual escolhi como temática os "animes esportivos": sendo as animações "obras de arte" que transmitem valores, aquelas que abordam algum esporte tendem a fazê-lo de uma forma especial.
Superação, esforço, disciplina, drama, comédia. Os animes esportivos abordam tudo isso. Algumas vezes vão além; mostram os dramas que realmente enfrentamos na vida; pratiquemos ou não um esporte.
Se os esportes, por si só, são uma forma de educar as pessoas, então os animes são uma forma artística de empacotar esse lado "educacional" com o lado "dramático" e "humorístico" em um só corpo, permitindo levar esses ensinamentos às pessoas sem que estas precisem, necessariamente, estar vivenciando a pratica de um esporte.
Mas é justamente aí que os animes esportivos são diferentes dos demais; caso o espectador se identifique com o esporte e seja motivado pela historia que está acompanhando na "telinha", ele pode; mesmo que não profissionalmente, trazer para o seu cotidiano o esporte abordado no anime de modo a expandir ainda mais o aprendizado que adquiriu na tela e também criar sua própria experiência pessoal com os ensinamentos adquiridos.
Isso aconteceu comigo. Acabei praticando boxe por algum tempo; claro que não profissionalmente. Quando descobri o anime do qual lhes falarei um pouco a seguir eu havia acabado de descobrir também uma escoliose e havia acabado de escutar de um ortopedista que eu deveria evitar todas as atividades esportivas de impacto; como correr - na época eu praticava corrida de rua -, bicicleta - era o meu meio de transporte e o foi até bem pouco tempo -, lutar, jogar bola, basquete, etc.
Boxe, portanto, estava completamente fora de cogitação. Pelo menos, assim me disse o ortopedista.
Como todo bom e jovem tolo, revoltado com minha situação e achando-a o fim da picada, resolvi fazer tudo ao contrário e comecei a praticar boxe. Pensando bem, talvez não tenha sido só tolice o que me moveu; diante de uma limitação eu decidi "renascer" e superar meu limite.
Descobri que não apenas o boxe tinha muito a me ensinar sobre como minha coluna poderia melhorar com os exercícios necessários a um pugilista como também o anime; que acabara de escolher como uma forma de me aprofundar no esporte e encontrar motivação, iria me ensinar e muito sobre superação, sacrifício, limites e acima de tudo, que só devemos desistir de algo depois de cairmos inconscientes tentando e tentando de novo (como na músia Under Star que é o tema de abertura da primeira temporada de Hajime no Ippo).
I want to dive... Lost mind...
I want to dive... Lost mind...
Why, why, why, why? I want to dive!
Feeling over...
(Under Star - Shocking Lemon)
Ok, eu não caí inconsciente e passei por muitos outros ortopedistas; com opiniões um tanto quanto diversas da do primeiro. Mas esta é outra história.
Vamos ao anime...
Episódio: Round 1
Chegou a hora de falar sobre Hajime no Ippo.
O anime é baseado em um mangá (da editora Kodansha) e que é publicado semanalmente no Japão pela revista Shonen Magazine. Uma coisa que acho bastante interessante é frisar que ele é publicado desde 1989 e pelo que li a respeito (pois não acompanho o mangá) ele ainda está sendo publicado (http://www.mangabr.com.br/mangas/view/hajime-no-ippo). Ele fez tanto sucesso (e ainda faz) que seu autor, George Morikawa, não se preocupa com a parte financeira e segue desenhando/escrevendo este magnífico mangá até hoje.
O anime possui 3 temporadas; The Fighting de 2000, New Chalenger de 2009 e Risings de 2014 (sendo que ainda não terminei de assistir a mais recente Rising e já ouvi falar - com isso quero dizer que li em algum blog - que está a caminho uma quarta temporada). Além de tudo há também um OVA; Mashiba vs Kimura de 2003 e um Filme; Champion Road de 2003.
Vou me deter, o máximo possível, no primeiro episódio da primeira temporada de Hajime no Ippo.
Não tenho por objetivo explicar em detalhes o que ocorre neste primeiro episódio; nem nos demais, de modo que não falarei sobre como os fatos que irei abordar irão transcorrer no anime. Mas irei falar sobre alguns pontos abordados e que para mim soam bastante significativos e merecedores de menção. Fazendo isso acabarei por apresentar alguns spoillers. Então fica o alerta para quem não quer descobrir de antemão o que acontece na história.
O anime mostra a vida de Makunouchi Ippo, um garoto tímido de 16 anos, que além de ir para a escola ajuda a mãe em casa com o negócio da família; aluguel de barcos de pesca. Seu pai, veremos mais adiante, já é falecido. Assim, Ippo não tem muito tempo para fazer amizades ou para sair com os colegas da escola para se divertir - ao menos ele não se dá muito tempo, uma vez que está sempre preocupado em ajudar a sua mãe. Ele demonstra já no primeiro episódio que há certo vazio em sua vida e, além disso, ele se sente uma pessoa fraca, tanto que mesmo sofrendo bulling por parte de uma turma de encrenqueiros ele parece não encontrar forças ou talvez motivação para fazer algo a respeito.
Um dia, porém, enquanto estava sendo espancado pelos bad-boys da escola ele é salvo por Takamura Mamoru, um jovem, porém já famoso boxeador estreante dos pesos médios.
Direi apenas que Ippo; ao agradecer Takamura, é criticado por este com uma frase bastante significativa e dita de um jeito bastante ríspido: "Odeio as pessoas que abusam dos fracos. Mas odeio mais ainda aqueles nunca revidam."
Isso mostra um pouco a linha filosófica do anime e seus ensinamentos que são a base para formar pessoas fortes de caráter.
O garoto, ao retrucar Takamura que o incentivava a revidar, diz que ele só acabaria sendo ainda mais espancado e que a vida toda ele foi atormentado daquela forma de modo que não se via de forma diferente daquela que ele conhecia. Novamente Takamura o critica dizendo "se você não fizer nada, nada irá mudar".
Ippo recebe de Takamura algumas fitas de vídeo com cenas de grandes nocautes do mundo do pugilismo, como uma forma de fazê-lo sentir-se melhor e mais motivado a se defender da próxima vez que os encrenqueiros cruzarem seu caminho.
Takamura não imaginava que ao assistir àqueles vídeos, Ippo acabaria refletindo sobre sua atual condição e tomando uma resolução que mudaria para sempre sua vida.
Claro que isso é algo bastante previsível em um anime esportivo e todos que me leem já devem ter deduzido que Ippo acabaria decidindo virar pugilista. Sim, é verdade, é esta a resolução a que ele chega.
Mas para além de todo e qualquer clichê, Ippo não irá receber apoio de Takamura. Quando o garoto o procura para agradecer uma segunda vez e para lhe contar sobre sua resolução e ainda pedir para ser treinado, o boxeador o chama de "covarde e fracote" e lhe diz que "esta vida de ringue não lhe cai bem". Com isso Takamura explica que apenas o havia incentivado a se defender, não a virar pugilista; um esporte bastante perigoso no qual os atletas arriscam suas vidas.
A advertência não é mero exagero; Ippo está sendo aconselhado por alguém que conhece toda a selvageria dos ringues e que sabe que o esporte não é para qualquer um. Ainda mais para um garoto que deu provas de não ser dado à brigas, socos e chutes. Dizer "eu vou me tornar um pugilista profissional" não é algo que se possa dizer levianamente.
Porém Ippo, mesmo parecendo um cara “fracote” e tímido é na verdade uma dessas pessoas com um tipo de força diferente; ele não é de fato alguém selvagem e que goste de brigas. Mas alguém que procura por algo superior e invisível. Logo ele demonstra uma força superior, poderosa e invisível. Quem assistiu ao anime sabe de que forma ele irá enfrentar no futuro os bad-boys que o massacraram no passado. É uma das muitas passagens profundas que o anime nos apresenta.
Ippo responde à critica de Takamura dizendo que ele quer se tornar forte. Quer descobrir o que as pessoas fortes sentem. Diz; com lagrimas nos olhos, que quer renascer. O garoto mostra sinceridade em sua resolução; muito mais que a ilusão de se tornar boxeador ele procura se tornar uma pessoa melhor através do esporte.
Pode parecer algo bastante usado em animes e obras afins.
De fato o é.
O anime nos mostra um típico rito de passagem; um conceito que parece inato ao ser humano quando olhamos para a história de nossa espécie; de antigos povos e também de povos modernos. A despeito de ser um conceito há muito conhecido, não há nada de trivial e simplório em um rito de passagem. O significado do rito é a "morte em vida"; quando uma pessoa deixa de ser seu "antigo eu" e torna-se um "novo eu" melhorado ou que busque a melhoria. Ainda hoje comemoramos a cada virada de ano uma espécie de rito de passagem; desejamos e prometemos alcançar tudo o que o ano velho não nos deu. Depositamos no ano novo a esperança em um amanhã melhor. Mas um rito de passagem só tem real valor e peso em nossa vida quando não é realizado levianamente. É isso que aprendemos com Ippo, um garoto que decidiu enfrentar sua aparente fraqueza "renascendo" como outra pessoa. E ele escolhe como rito de passagem sua entrada no mundo do pugilismo e a sua busca por algo tão vago quanto as nuvens no céu: o que realmente significa ser forte?
Eis um anime que deixa uma forte impressão. Para além dos socos dentro do ringue e das gargalhadas fora dele temos uma obra que mexe com o espírito; dizendo verdades óbvias, mas que muitas vezes não enxergamos mesmo que diante de nossos olhos. O que realmente significa ser forte? Quanto peso tem o meu soco? Quanto peso tem meu esforço? Quanto peso tem meu trabalho? Quanto peso há em minha habilidade, seja lá qual for a área em que atuo? Do que depende de fato a minha força?
Basta esforço e dedicação para alcançar a vitória? É preciso sorte? É preciso dom? Ou nada disso pode garantir que não enfrentaremos, cedo ou tarde, o fantasma do fracasso?
Muito mais do que nos dar respostas, Hajime no Ippo nos faz questionar: o que mais importa? A Jornada? O sucesso? O fracasso? Ah, o fracasso... Como enfrentá-lo?
Mas creio que, seja lá qual for a nossa jornada, ou o tipo de sucesso que almejamos ou o fracasso que temamos tudo depende do que nos motiva a dar o primeiro passo e rumar para onde quer que nosso esforço possa nos levar. Será paixão essa força que nos impulsiona, mesmo que contra o medo? Ou será apenas o medo de não chegar a parte alguma?
Seja lá para onde dermos o primeiro passo, não podemos decidir fazê-lo levianamente.
Takamura, percebendo que o garoto não estava sendo precipitado sobre aquela resolução e preocupado por achar que o mesmo acabaria se dando muito mal no boxe resolve impedi-lo de seguir com aquela ideia aparentemente ingênua. Assim ele dá um desafio para o carismático, tímido e aparentemente fracote Makunouchi Ippo com a intenção de fazê-lo desistir da ideia.
O que irá acontecer?
Convido todos a descobrirem aventurando-se neste anime que fala sobre boxe como o faria uma enciclopédia, de caráter como um filme de drama, faz rir como uma ótima comédia, e nos faz roer as unhas diante de lutas eletrizantes - não estranhe se você se pegar torcendo por um ou outro boxeador, a animação é tão bem feita que transmite toda a tensão de uma luta real - e acima de tudo nos ensina que devemos perseguir algo na vida que pareça-nos justamente assim; invisível, inalcançável e amplo como só o horizonte dos sonhos é capaz de se mostrar.
Eu acredito que; como o esporte e a educação, os animes (e na verdade todas as formas de expressão artísticas) podem mudar o Mundo.