🤔🤔🤔
Hoje é dia 28/03/2023, uma terça-feira nublada e um pouco fria; se compararmos com o calor recente do fim do verão.
Mas, se não houvesse ninguém para testemunhar esse céu perfeitamente cinzento, ele existiria?
Essa é a questão que minha filha me apresentou ontem à noite. Bom, na verdade, ela não falou do céu cinzento: ela apresentou uma pergunta antiga e já usada em debates filosóficos antes: Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, ela faz barulho?
Para minha sorte, eu já havia lido e conversado sobre esse assunto anos atrás. Na verdade, ouvi uma variação dessa pergunta (mas que pretende chegar ao mesmo lugar): Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, ela caiu mesmo?
Mas estou me adiantando no assunto...
Quero deixar essa noite registrada (o máximo possível: afinal, estou muito orgulhoso da minha pequena filósofa), então vou recapitular um pouco as coisas antes de entrar nos meandros filosóficos da árvore que cai...
Após chegar em casa e atualizar a minha esposa a respeito de um assunto que estou tratando no condomínio onde moramos (que ironicamente envolve o corte de duas árvores) enquanto tirava meu coturno e guardava minha mochila, resolvi lavar a mão e me sentar para jantar; afinal, dei sorte de chegar em casa no momento em que a mesa ainda estava posta... Infelizmente o trânsito e a distância me impedem de manter um horário regular e, com isso, nem sempre consigo jantar junto delas.
Assisti a um episódio de irmãos a obra enquanto jantava. As meninas já haviam se levantado e lavado a louça e voltado para o sofá.
Assisti então um episódio de Full Metal Alchemist: Brotherwood com a Diana e a Michelly. Esse anime sempre rende vários papos cabeça. Ainda mais o episódio que assistimos ontem: Um é tudo, Tudo é Um. Acredito que esse episódio mereça um post só sobre ele e sobre o significado de "Um é Tudo, Tudo é Um"; mas deixo isso para outro momento.
Quando terminamos de assistir ao episódio, falei para as meninas irem dormir. A Michelly foi escovar os dentes equanto eu fiquei conversando com a Diana.
Não lembro como ou porque; talvez ela tenha visto algum vídeo na minha timeline do Youtube ou talvez ela tenha ouvido na escola, mas ela me abordou, dizendo que queria entender aquela questão: Se uma árvore cai em uma floresta, ela faz barulho?
Meus olhos brilharam.
— Filha, você gosta de filosofia?
— Claro pai. Eu não vivo particibando dos debates filosóficos com vocês aqui em casa e com minhas amigas na escola?
— Tem razão — respondi ponderando —, afinal, nossas conversas quase sempre envolve uma dose generosa de filosofia.
A reprodução de nossa conversa não está perfeitamente exata e na devida ordem (nossa memória pode ser confusa às vezes), mas o conteúdo e o rumo da nossa conversa seguiu exatamente por aí...
— Na escola, a professora falou que no colegial do ensino público os alunos tem que escolher algumas matérias e coisa e tal (porque agora estão diminuindo as matérias nos últimos anos), mas no Sesi não tem isso de escolher: vocês vão ver todas essas materias (falou a professora). Incluindo filosofia — disse-me a Diana, toda empolgada. — Mas pai, se tivessemos que escolher alguma matéria, eu escolheria filosofia, com certeza.
Ok, eu admito que sou um pai coruja e tenho muito orgulho das minhas crianças. Estou criando duas genias do mau... Quero dizer, duas garotas inteligentes, de mente afiada e espírito vivo. A Diana realmente adora os nossos bate-papos filosóficos em casa: minha esposa e eu vivemos tendo essas conversas e fazemos questão da Diana e agora da Michelly participarem delas. Com isso, a Diana tornou-se mestra em criar argumentos e defendê-los: e invariávelmente eu sou a vítima dos super-poderes que ela desenvolveu na área ao longo dos seus doze aninhos.
A Michelly; que com 9 anos já está quase da altura da tia Lilian, é uma menina que adora ler e desenhar (muito parecida comigo quando eu era criança: eu também era uma criança introspectiva e adorava passar horas desenhando, escrevendo e criando o que quer que fosse com os recursos que eu tinha a minha disposição; nem que eu tivesse que quebrar meus brinquedos para tentar usar suas peças para construir um robô: eu sempre falhava miseravelmente e meu robô nunca ficou pronto). Já a Michelly tem a sorte de contar com as coleções de lego para construir suas casinhas, castelos e veículos: que ela adora nos mostrar.
Nesse final de semana, após ver minha esposa e eu conversando sobre Tolkien enquanto assistíamos um canal sobre o assunto no Youtube, a Michelly resolveu pedir para pegar uma coleção de quadrinhos que temos em casa para ler: mas ela me surpreendeu com a escolha: Um Sábado Qualquer, do Carlos Ruas. Ela já leu praticamente todas as edições nesse mesmo final de semana.
Voltando à minha conversa com a Diana, eu dizia que meus olhos brilharam quando ouvi aquela pergunta à respeito da árvore. Eu disse para ela:
— Filha, o papai já teve algumas conversas interessantes sobre esse assunto quando eu era mais novo; algumas dessas conversas com seu tio Ériton. Então eu sei te explicar mais ou menos o que essa pergunta propõe.
— Então me explica, porque eu ainda não entendi...
— Vamos lá...
Essa questão tem a ver com um ramo da filosofia (acho que o idealismo subjetivo), atribuído a um tal de Berkely, que propõe uma visão um pouco diferente do que é o mundo. Segundo essa visão, o mundo não é o conjunto de todas as coisas concretas e materiais que existem. Na verdade, o conjunto de todas as coisas concretas que existem são apenas o meio à nossa volta. Cada indivíduo vai formar o seu próprio mundo, através das informações que consegue perceber do meio à sua volta através dos seus sentidos.
Neste caso, para Berkeley, como um indivíduo não é onisciente e, por consequência, não consegue perceber todo o universo concreto ao mesmo tempo, então o seu mundo é formado apenas pela pequena fração do que os seus sentidos são capazes de perceber.
Dito de outra forma: se a árvore cai em uma floresta distante de um indivíduo, ela não faz barulho para esse indivíuo, afinal, ele não pode perceber esse barulho de onde ele está. Na verdade, segundo o idealismo subjetivo de Berkeley, para esse indivíduo a árvore sequer existe, uma vez que os seus sentidos nunca puderam percebe-la.
Dito de outra forma: imagine que há uma pessoa chamada Maria, que mora em uma pequena vila no interior de São Paulo, no Brasil. Maria nunca saiu da sua pequena vila, de modo que ela conhece apenas as pessoas que moram na região. Agora, imagine que uma árvore lá na Rússia cai após ser atingida por um raio. No exato momento que essa árvore caiu, Maria estava sentada à mesa, tomando café da manhã. Segundo o idealismo subjetivo, para Maria a árvore não fez barulho, pois seus sentidos não ouviram nada. Na verdade, essa linha filosófica defende que a árvore sequer existe para Maria, uma vez que ela nunca a viu e não estava por perto para tomar consciência da existência dessa árvore.
O nosso amigo filósofo; Berkeley, é ainda mais radical em sua teoria: para ele, algo só existe enquanto há alguém para perceber esse algo. Sendo assim, quando os professores e os alunos deixam uma sala de aula, fechando a porta, as cadeiras e carteiras que estavam dentro da sala de aula deixam de existir e só voltam a existir quando os alunos e professores voltam para dentro da sala de aula.
Essa é a teoria do idealismo subjetivo de Berkeley (que em sua época, ele chamou de "imaterialismo".
Pode parecer uma ideia muito louca e sem sentido. Mas calma lá... A filosofia nunca é algo sem sentido e seu exercício nos permite ver o mundo sobre vários angulos diferentes...
— É isso que eu gosto na Filosofia pai; nunca dá para dizer que uma ideia está errada — disse-me ela, lembrando de um exercício filosófico que já tinha visto na escola, em uma aula. — É como no caso daquele exemplo de um cara que diz que tem um Dragão morando em casa; não dá para provar a inexistência do Dragão: se a pessoa pede para ver o Dragão, o cara fala que ele é invisível, se pede para jogar farinha nele, diz que ele na verdade é étereo e por isso a farinha passaria através dele, etc.
— Exato minha filha. Em Filosofia o importante não é provar nada: e sim contestar e experimentar ideias novas, por mais loucas que pareçam.
No caso do "imaterialismo" de Berkeley, apesar de muitos filósofos e cientistas terem contestado suas ideias ao longo dos anos, suas ideias nos fazem lembrar de um recurso muito usado hoje em tecnologia...
Para quem entende um pouco de computação, ou gosta de jogos de vídeo game, há uma similaridade assustadora com essa teoria e a estratégia usada por desenvolvedores de jogos para "economizar" recursos computacionais (como memória e processamento). Por exemplo, quando estamos jogando um jogo de mapa aberto (também conhecido como Sandbox) como Conan Exiles, GTA ou Final Fantasy XV, e o nosso personagem está em uma determinada área, apenas os objetos e cenários daquela área são renderizados (transformados em coisas visíveis) e exibidos em tela. As outras áreas; todas aquelas em que o nosso personagem não está no momento atual, deixam de existir, de modo a economizar recursos.
Podemos dizer que os computadores usam o conceito de "imaterialismo" para economizar recursos.
Além disso, Berkeley (sendo um bispo) ainda postulou que há um ser no universo que, por ser onisciente, percebe tudo o tempo todo e, por isso, quando os professores e alunos voltam para a sala de aula, as cadeiras e as carteiras ainda estão lá do mesmo jeito. Acontece que esse ser onisciente nunca deixou de observar o interior da sala de aula e por isso o interior da sala de aula não se desfez em uma poça de nada. Na visão de Berkeley esse ser onisciente, capaz de manter a coerência em um Universo regido pelo imaterialismo é ninguém mais, ninguém menos que Deus.
No caso dos jogos, como Conan Exiles, GTA e Final Fantasy XV, a figura de Deus é exercida pelo computador.
E, por mais que seja difícil acreditar no "imaterialismo" (e o importante em filosofia não é acreditar ou não: mas sim questionar, imaginar e explorar ideias), há teorias atuais que consideram que o nosso universo funciona como uma simulação de computador (não exatamente como em Matrix, mas algo por aí).
Claro, a ideia de que o nosso Universo é uma simulação de computador é só mais de uma de várias teorias. Mas o ponto é que é uma teoria séria e que tenta desvendar várias questões tendo como ponto de partida experimentos ciêntificos.
Caso essa teoria do universo ser uma grande simulação de computador esteja correta, então Berkeley pode ter razão e Deus pode estar economizando recursos computacionais, fazendo com que a árvore só cai e faça barulho se algum personagem em sua imensa simulação estiver nas imediações para presenciar a queda e ouvir o barulho.
— Mas pai... Por que a inteligência artificial permitiria que um filme como Matrix existisse em sua simulação. Isso não daria pistas para os humanos de que eles estão em uma simulação?
— Filha, uma I.A. tão avançada a ponto de criar a simulação de um universo, poderia muito bem ter senso de humor. Daí a explicação. Afinal, não existem vários escritores e roteiristas que quebram a quarta parede e falam com o publico através dela? Ou ao contrário, interferem no rumo dos acontecimentos dos seus personagens, dando a entender que esses estão em um universo criado por eles? Isso acontece, por exemplo, em uma das temporadas de Jovens Titãns.
— É verdade... E em qualquer história, o escritor dela é como um Deus para aquele universo...
— É uma forma de ver as coisas...
Isso também é legal em Filosofia: você não precisa pensar igual a ninguém. Eu mesmo vejo a ideia de Berkeley de outra forma. Na minha visão cada pessoa é um univeso em si mesma. O universo individual de cada um é formado a partir do que a pessoa percebe do ambiente à sua volta. Vamos chamar de ambiente tudo aquilo que os nossos sentidos podem perceber: o mundo concreto faz parte do ambiente, mas também emoções e conceitos abstratos. Sendo assim, nenhuma pessoa vai ter um universo interno igual ao de outra pessoa. Olhando desse ponto de vista, eu diria que a árvore que cai em um lugar distante não existe no seu universo.
— Mas pai, eu sei que árvores existem e que eventualmente elas podem cair. Então não é como se essa ideia não estivesse em meu universo interno.
— Talvez eu tenha usado o exemplo errado. Claro, existem coisas que você espera que existam em seu universo interno. Mas, a grande questão não são as coisas pelas quais você espera: sobre essas você tem certa consciência, você joga luz sobre elas e por isso elas existem para você. Mas imagine o seguinte: você mora aqui nesse bairro desde que nasceu. Você conhece sua escola, seus avós e a casa deles, o condomínio, algumas ruas do bairro e tal. Certo?
— Agora, imagine que após tantos anos morando aqui, eu diga para você um belo dia que na rua de trás do condomínio sempre teve uma casinha que, nos fundos dela, há um pequeno zoológico com zebras e urangotangos. O que você sentiria quando eu disse isso?
— Nossa, é mesmo... É como se isso nunca tivesse existido e de repente...
— Esse é o seu universo interno descobrindo algo que até então estava na escuridão da inexistência. Para você, é como se esse lugar não existisse mesmo; você o ignorava completamente. Na minha visão das coisas, cada um tem um universo próprio, que está crescendo o tempo todo conforme nós experimentos o nosso ambiente concreto e abstrato (porque coisas abstratas como emoções e conceitos também são percebidos pela nossa mente).
Mas a minha visão das coisas é só mais uma dentre muitas possíveis... Por isso eu gosto de filosofias filha; não certo e errado e sempre terminamos uma conversa com mais dúvidas do que respostas. Porém, também é verdade que ganhamos mais perspectivas e perspectiva é algo importante. Acho que nem podemos dizer que terminamos as conversas... Ao invés disso a interrompemos temporariamente. Essa conversa sobre a árvore que cai... Já voltei a ela tantas e tantas vezes e, em todas elas, fico com mais perguntas que respostas. E também enriqueço minha forma de ver as coisas.
— Então pai, você vai me indicar algum livro sobre o assunto.
— Sobre filosofia?
— É. Mas não pode ser didático. Tem que ser uma história. É para a aula de português e a cada mês temos que ler um livro diferente. Lembra, agora estou lendo As aventuras do caça-feitiço...
— É verdade... Bom, para sua sorte eu sei o livro perfeito e, para melhorar, temos ele em casa.
— Qual é?
— O Mundo de Sofia... E pensando bem, acho que foi nele que ouvi falar pela primeira vez sobre esse tal de Berkeley...
E esse foi o resumo dessa noite cheia de filosofia e questões interessantes sobre o universo e uma árvore que cai e faz barulho (ou não cai... na ausência de um espectador). Minha intenção foi apenas registrar em diário esse momento familiar feliz, o meu orgulho da Diana e da Michelly, que estão se tornando duas meninas questionadoras sobre a orientação da minha esposa Lilian e a minha.
Fico por aqui (ou fico aqui, caso haja alguém em algum lugar para ler esse post, ou talvez eu não fique em parte alguma, caso não haja nenhum player nessas imediações do universo e Deus resolva não me renderizar para economizar recursos...).