O Rei de Amarelo e a cor da loucura

"um espectro de aparência cadavérica e trajando andrajos esfarrapados de cor amarela é um sinistro druida com uma coroa negra de pontas retorcidas sentado em um trono de pedra de onde ele observa um mundo onírico povoado com pesadelos, rosto assustador de múmia, braços abertos enquanto loucos gritam a sua volta, cores vibrantes, cenário sublime"
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Explorando O Rei de Amarelo e sua cor maldita:

Uma Jornada pelo Horror Cósmico

O mar quebra pela orla, vago,
Os sóis gêmeos afundam sob o lago,
As sombras se alongam
Em Carcosa.

Estranha é a noite em que estrelas negras sobem,
E estranhas luas o céu percorrem
Mas ainda mais estranha é a 
Perdida Carcosa

Que morra inaudita,
Onde o manto em retalhos do Rei se agita;
A canção que entoarão às Hiades na
Obscura Carcosa.

Canção de minh'alma, minha voz é finada;
Morra sem ser entoada, como lágrima jamais derramada
Seca e morta na
Perdida Carcosa.

"Canção de Cassilda" em O Rei de Amarelo, ato 1, cena 2
— Robert W. Chambers

Hoje vou falar de outra obra que eu já indiquei por aqui como uma leitura recomendada para o Halloween. Na verdade eu recomendo essa leitura em qualquer época... Mas, próximo do Halloween temos um motivo a mais para devorar obras que desafiam certos preceitos sociais... Mas isso é outra história.

Faz alguns anos que li os contos do livro O Rei de Amarelo (contos perigosos de se ler). Espera? Como assim contos perigosos?

Calma! Eu já explico...

Imagine um livro que, ao ser lido, pode mudar a mente de uma pessoa, levando-a a loucura? Fazendo com que essa pessoa perca não apenas a sua sanidade como também as amarras sociais que a impedem de realizar seus desejos; mesmo aqueles mais sombrios e mesmo que isso possa levar a pessoa ao suicídio. Imaginou?

Pois bem, esta é a premissa em torno dos contos de O Rei de Amarelo. Sim, este livro já foi idealizado por Robert W. Chambers, um artista (pintor e ilustrador) que estudou École des Beaux-Arts e  Académie Julian (ambas as escolas situadas em Paris), antes de se tornar escritor. Apesar de ter estudado arte em Paris, Chambers nasceu nos Estados Unidos em 1865. Como escritor, foi conhecido por sua versatilidade literária, transitando por diversos gêneros, incluindo romance, poesia e horror.

O livro O Rei de Amarelo é na verdade uma coleção de contos de terror, publicada pela primeira vez em 1895, em que a maioria das histórias estão interligadas, sendo que um dos elos que conectam essas histórias é a ideia do Rei de Amarelo.Mas vamos entender isso falando um pouco sobre o primeiro conto (possui alguns spoilers, mas bem leves). Apesar de dizer que o livro é uma coletânea, a mesma não é uma coletânea comum, pois os contos possuem uma forte ligação simbólica, não se tratando de contos aleatórios de Chambers reunidos em uma mesma publicação: são contos escritos com o propósito de comporem essa obra como um todo. Talvez por isso o livro abranja diversos gêneros, incluindo horror, decadentismo e ficção macabra.

No primeiro conto de O Rei de Amarelo, intitulado "The Repairer of Reputations" (O Reparador de Reputações), o narrador, Hildred Castaigne, compartilha sua perspectiva perturbadora. A história se passa em um mundo distópico, onde Hildred acredita ser o herdeiro do trono americano e onde o público está obcecado por uma sinistra peça teatral chamada O Rei de Amarelo. A peça "O Rei de Amarelo" é mencionada repetidamente ao longo do conto como um artefato destrutivo. Quando lida ou encenada, a peça faz com que seus leitores ou espectadores fiquem marcados, muitas vezes levados à insanidade ou ao suicídio. A própria peça é descrita como tendo uma segunda metade que é proibida, e sua natureza exata permanece misteriosa e perturbadora. O narrador, Hildred, é uma figura instável e delirante. Ele acredita em uma conspiração para restaurar a monarquia nos Estados Unidos e busca vingança contra seu primo, Louis Castaigne. A história explora a paranoia, a ilusão e a distorção da realidade à medida que o leitor é levado ao mundo tumultuado da mente de Hildred e à influência sinistra da peça "O Rei de Amarelo" sobre ele.

Este conto é um exemplo marcante do horror psicológico e da influência do sobrenatural na obra de Chambers, criando uma atmosfera sombria e desequilibrada desde o início.

É interessante notar que, em alguns dos contos, os protagonistas dos contos de Chambers nesta coleção são artistas (como ele próprio foi pintor e ilustrador antes de se tornar escritor). Interessante ainda notar que o artefato maldito capaz de levar as pessoas à loucura e à autodestruição é uma obra de arte: notadamente o roteiro de uma peça teatral.


Os contos em O Rei de Amarelo são:
  • O reparador de reputações
  • A máscara
  • No Pátio do Dragão
  • O Emblema Amarelo
  • A Demoiselle d'Ys
  • O paraíso do profeta
  • A rua dos Quatro Ventos
  • A rua da primeira bomba
  • A rua de Nossa Senhora dos Campos
  • Rue Barrée

Vamos passear agora sobre informações e curiosidades a respeito dessa obra, a qual estou louco (sacaram? Estou louco...) para reler nesse Halloween... Já que faz tempo que li e não lembro perfeitamente de todos os contos. Mas lembro que o meu favorito (ao menos, na época em que li o livro pela primeira vez) foi A máscara. Lembro também de ter gostado muito dos poemas e diálogos que abrem alguns contos no livro, ou seja, são suas epígrafes. Apesar de parecerem desconexos com as histórias tratadas ao longo do livro, esses poemas não estão, de forma alguma desconectados: eles são alusões à tal peça O Rei de Amarelo, como se fossem trechos da peça (isso está claro, pois no final de cada poema ou diálogo, há uma alusão ao trecho da referida peça). Além disso, esses poemas fazem alusões metafóricas a elementos presentes nos contos, como no poema abaixo, relacionado com o conto a máscara:

Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.
Estranho: É mesmo?
Cassilda: É mesmo, está na hora. Todos tiramos nossos disfarces, menos o senhor.
Estranho: Eu não estou de máscara.
Camilla: (Horrorizada, em particular para Cassilda.) Não é máscara? Não é máscara!
O Rei de Amarelo, Ato I. Cena 2

Há um comentário neste livro (na edição da editora Intrinseca, que eu tenho em casa), sobre o trecho acima, que diz o seguinte:
A parte supostamente "enlouquecedora" da peça O Rei de Amarelo é o segundo ato. Tanto a epígrafe deste conto (a máscara) quanto a "Canção de Cassilda", que abre o livro, são trechos extraídos do primeiro ato. Com isso, Chambers evita quebrar o encanto da peça, delegando à imaginação do leitor a tarefa de intuir quais seriam as passagens mais perturbadoras.

Isso vai de encontro ao que eu mencionei: as epígrafes usadas por Chambers são trechos de um dos elementos principais do livro, que é o roteiro dessa peça sobrenatural. Com este elemento, Chambers trabalha o conceito da doença da consciência: "O Rei de Amarelo" desafia a realidade ao incorporar a própria peça teatral dentro da narrativa, criando uma sensação de desconforto e paranoia. Por isso não só esses trechos não devem ser ignorados pelo leitor, como eles estão ali para ajudar a criar o clima perturbador que permeia os contos contidos no livro.

Por todo esse cuidado de Chambers e por ter sido tão inovador no gênero do horror psicológico que O Rei de Amarelo é uma obra que tem cativado leitores e inspirado escritores por décadas. Inclusive, Chamvers e sua obra macabra teve influência direta sobre H.P. Lovecraft, um dos mestres do horror cósmico, que também explorou temas semelhantes em suas histórias.

O legado de Chambers e dessa obra é tão duradouro, que influência a cultura pop e os escritores contemporâneos, artistas e criadores de mídia, incluindo séries de TV, filmes e jogos. Um exemplo disso é a série de TV "True Detective". Essa série trouxe destaque renovado para a obra O Reu de Amarelo, fazendo referências à misteriosa peça teatral.

Por isso que essa pequena coleção deve ser encarada como uma obra que transcende o tempo e gênero, mergulhando os leitores em um mundo de horror cósmico e questionamentos existenciais. É um lembrete da capacidade do horror literário de perturbar e intrigar, mesmo após mais de um século de sua publicação.

Mas por que Amarelo?

Há uma curiosa coincidência no uso da cor amarela como símbolo em várias obras literárias. Claro, o mais provável é que não se trate de uma coincidência e sim de uma escolha consciente dos escritos em questão, embora em minhas pesquisas eu não tenha encontrado nada que formalize essa suspeita. Mas é fato que desde sempre os artistas se influenciam mutuamente.

Um exemplo disso é a amizade e correspondência que havia entre Robert E. Howard e H.P. Lovecraft, algumas das histórias de Howard usam elementos do horror cósmico criado por Lovecraft e Howard chegou a afirmar que duas histórias ocorrem no mesmo universo criado por Lovecraft.

Outro exemplo (que já citei acima) é a obra de Robert W. Chambers ter influenciado H.P. Lovecraft, que por sua vez influênciou os roteiros de jogos como Dark Souls e Elden Ring e por vai a coisa...

Bom, mas voltando para a cor amarela... Uma série de obras literárias de ficção incorporam a cor amarela de forma significativa em seus enredos ou títulos (não sei quando isso começou, mas temos exemplos com mais de um século para apoiar essa evidência). As obras em questão são quase sempre estão associadas à literatura de terror e ao gênero do horror cósmico e também obras que retratem personagens com problemas psicológicos declarados ou pelo menos insinuados. O "Rei de Amarelo" é o caso mais lembrado atualmente.

O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde e Às Avessas de Joris-Karl Huysmans também utilizaram a cor amarela em seus enredos e simbolismo. Em Dorian Gray, o amarelo é associado a um livro que influencia o personagem principal, enquanto em Às Avessas, a cor amarela é usada para simbolizar o decadentismo e o estilo de vida extravagante do protagonista. Para saber mais sobre essas obras, eu recomendo o artigo da Wikipédia sobre o Retrato de Dorian Gray, e o artigo da Wikipédia sobre a obra Às Avessas.

Temos também, em 1891, A Conquista do Abismo de Joséphin Péladan. Esta é uma novela decadentista do escritor francês Joséphin Péladan, que explora temas ocultos, simbolismo e elementos sobrenaturais em um cenário amarelado.

Já em 1907, temos O Quarto Amarelo de Gaston Leroux. Este romance de Leroux, autor de O Fantasma da Ópera, apresenta a cor amarela como parte de um enredo misterioso envolvendo um quarto amaldiçoado e mortes inexplicáveis.

Em resumo, há uma conexão; ainda que vaga e não oficial, entre várias obras de autores diferentes e que incorporaram a cor amarela de maneira intrigante em seus enredos ou títulos, muitas vezes explorando temas de decadência, loucura e horror cósmico. Essas obras têm uma atmosfera distintiva e são apreciadas por seu uso simbólico e misterioso da cor amarela.

Mas e quanto à motivação de Chambers? Bom, eu encontrei pistas bastante vagas, nada oficiais e que não passam de suspeitas e divagações de uma mente (a minha mente) paranóica com a busca por significados e símbolos. Acontece que Robert W. Chambers foi pintor e ilustrador, tendo inclusive cursado escolhas famosas na área (conforme citei no início do post). Neste caso, atribuo o significado que Chambers deu a cor amarela ao escolher esta como símbolo da loucura e decadência, o significado que outros artistas (pintores) contemporâneos seus davam para as cores e para esta cor em específico.

Por exemplo, Wassily Wassilyevich Kandinsky foi um artista plástico (e pintor) nascido em 1866 (contemporâneo de Chambers) e que lessionou na Baujaus, onde deu aulas de pintura e uma oficina na qual falou de sua teoria das cores com elementos de psicologia. Kandinsky foi introdutor da abstração no campo das artes visuais. Eu recomendo o artigo da Wikipédia sobre Kandinsky para quem quiser saber mais sobre esse artista. Em sua teoria das cores, ele dizia o seguinte a respeito das cores:

A cor é o meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a tecla, o olho é o martelo moderador, a alma é um piano com muitas cordas e o artista representa a mão que, mediante uma tela determinada, faz vibrar a alma humana — Wassily Wassilyevich Kandinsky — trecho extraído de um artigo no site Carta Capital, sobre Kandinsky.

Ou seja, podemos deduzir que Kandinsky acreditava que as cores podediam exercer uma influência muito grande sobre a alma humana.Além disso, em sua teoria das cores, ele dizia o seguinte a respeito da cor amarela:

Amarelo
Movimento: o amarelo possui um movimento irradiante e excêntrico e representa um salto para alem de todo limite, a dispersão da força em torno de si mesma.
Simbolismo: uma cor essencialmente material e terrestre, uma cor fascinante e extravagante, uma explosão de energia, um desperdiçar das forças.
Temperatura: Kandinsky caracteriza como a cor mais quente de todas.
Som Musical: sons extremos agudos.
Estado de Espírito: a cor da loucura e delírio, uma explosão emocional, um acesso de fúria. Uma cor que possui uma forte intensidade e atormenta o homem. — trecho extraído de um artigo do site Robson Moulin, sobre Kandinsky.

Creio que o que Kandinsky diz em "Estado de Espírito" reflete exatamente a razão pela qual Chambers e outros autores usaram a cor amarela em suas obras que tratam desse terror psicológico, cheios de paranóia, decadência e personagens atormentados.

Não posso afirmar que o trabalho de Kandisnky ou o próprio influênciou Robert W. Chambers (uma vez que este também era pintor). Não obstante não poder fazer essa afirmação, posso certamente sustentar minha suspeita de que o conhecimento que Chambers tinha sobre a arte visual o fez esbarrar com essa interpretação da cor amarela em algum momento.

Não descarto, contudo, a hipótese de eu estar errado e a referência a esta cor vir de outro lugar; talvez folclórico ou mesmo histórico. Por exemplo, na Idade Média tanto Judas como o Diabo eram representados vestidos de amarelo. Contudo não encontrei nenhum registro que aborde o motivo da escolha de Chambers e, com isso, por enquanto fico com a minha suspeita de que os seus conhecimentos sobre artes visuais e sobretudo sobre a pintura é que o fez ter contato com a interpretação dada por Kandinsky sobre a cor amarela.

Preciso dizer que O Rei de Amarelo foi publicado em 1895 e, por tanto, muito antes que Kandinsky lecionasse na Bauhaus sobre sua teoria das cores (o que ocorreu entre 1922 e 1933). Dessa forma, se Chambers teve contato com essas ideias, foi muito antes de Kandisky ser professor na Bauhaus. Talvez no meio dos artistas (pintores, ilustradores, etc) houvesse uma troca de ideias e correspondências a cerca de suas teorias, bem como de suas tecnicas e conhecimentos relacionados ao meio.

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"um espectro de aparência cadavérica e trajando andrajos esfarrapados de cor amarela é um sinistro druida com uma coroa negra de pontas retorcidas sentado em um trono de pedra de onde ele observa um mundo onírico povoado com pesadelos, rosto assustador de múmia, braços abertos enquanto loucos gritam a sua volta, cores vibrantes, cenário sublime"