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Quem será a misteriosa espiã alada?
revelações tenebrosas e um inimigo sinistro
Em A Misteriosa Espiã Alada, conhecemos mais sobre a misteriosa narradora de evento sinistro que se abateu sobre a Cidadela Marítima de Ancar e também sobre a figura sombria a quem a narradora se refere como "Assombrado" e "Sempre-sobre-a-torre". Quem é a misteriosa donzela alada? Quem é a misteriosa figura que a interpela através de um aparente feitiço sinistro no alto do torreão sombrio, cercado pelas ruínas de um templo ancestral tomado pela vegetação e pelas raízes de árvores frondosas e soturnas que dançam e cantam com o vento a música lúgubre típica dos cantos ermos do mundo?
Nesse post apresento a continuação do capítulo 1 (A Misteriosa Espiã Alada) do ciclo "O Ventre de Pedra" da saga "O Governador das Masmorras". Esse é um projeto antigo, mas que ainda está em andamento. Ele faz parte de um projeto literário maior, que inclusive já teve algumas publicações (como O Leão de Aeris e Os Demônios de Ergatan; que será repúblicado como "Os Segredos dos Suna Mandís" em mais de uma parte). No momento, o material que compõe todas as sagas dentro desse universo; esse mundo estranho, estão sendo revisados para que contos, novelas e até romances sejam lançados (em um futuro que, apesar de incerto, espero que não esteja tão longe). Para conhecer mais sobre esse projeto, eu indico um post antigo e também indico um post mais atual aqui do blog: em "O Povo das Mandalas Errantes" eu falo sobre os trabalhos mais recentes desse universo e explico um pouco também sobre o andamento desse projeto.
Agora, deixo vocês com primeiro capítulo narrado em primeira pessoa por um personagem que foi a minha primeira experiência em contar histórias sobre um ponto de vista não humano e que eu viria a adotar novamente em outros trabalhos.
Após a leitura, recomendo o post A Cela; que também faz parte de O Ventre de Pedra.
Cap. 2 - A Misteriosa Espiã Alada
— Sim... Era a Estrela Negra... Um dos mais antigos séquitos de Araór que sobreviveram ao longo do tempo. Diante deles os soldados que guardavam a casa foram caindo, um a um. Soldados não eram páreo para os poderes dos “sinais de Araór”, que distorcem o mundo... Os sinais que eles controlavam. Temi o que poderia acontecer à “Filha” e à “Filha-da-filha”. Elas haviam sumido como em um encanto e eu esperava que o encanto também as ocultasse da Estrela Negra. Temi o que o “Sempre-sobre-a-torre” faria se eu deixa-se algo acontecer a elas... Mesmo que ele nunca tenha dito que haveria um castigo se eu fracasse... Mas eu nada poderia fazer contra a Estrela Negra... Eu sabia disso... E o “Sempre-sobre-a-torre” também sabia... — Ela parecia muito cansada enquanto falava; o suor continuava escorrendo por sua face corada como se ela estivesse em uma sauna.
— A casa foi invadida e logo ouvi uma daquelas coisas que vestiam a carne de gente falar “um túnel... ela fugiu por aqui...” e no mesmo instante temi que a Estrela Negra as encontrassem. Se eu entrasse novamente na casa para seguir pelo túnel eu seria vista... E eu não sobreviveria à eles; à Estrela Negra... Então me pus a procurar algum sinal das duas por todos os cantos de Ancar partindo da posição da casa... Almejava alcança-las antes deles... — Seus lábios estavam deixando a coloração avermelhada e estavam começando a ficar pálidos. As pontas de seus dedos começaram a ficar gelados.
— Fiquei me perguntando como não havia percebido um túnel naquela casa... Como não percebi e a Estrela Negra percebeu tão rapidamente... Me perguntei se as pessoas que matei na casa realmente não sabiam nada sobre a existência daquele túnel... Com que feitiço o ocultaram de meus sentidos...Como ele fora escondido tão bem de minhas habilidades... Como... Como... Como... Como... — Enquanto ela repetia aquela última palavra o seu corpo estremecia. Talvez fosse raiva. — Duvidei de mim mesma naqueles momentos terríveis. Naqueles momentos em que sentia o desfecho iminente se aproximar. — O ouvinte acompanhava as palavras dela. Acompanhava atentamente os lábios que dançavam febrilmente na tarefa de narrar sua história.
— Enquanto eu sobrevoava os quatro cantos da ilha eu vi novamente; muito mais longe que antes, o navio em chamas no qual estava o “Cavalo negro”... Eu não encontrava nenhum sinal das duas. Não sabia mais onde procurar. Não sabia mais o que fazer. Resolvi então me aproximar do “Cavalo negro” para conferir se ele realmente havia tombado em combate, pois caso estivesse vivo eu poderia descobrir com ele onde o túnel levaria as duas. Havia uma chance remota de alcança-las primeiro... Um chance remota... Mas ainda assim uma “chance”... Chegando ao navio eu pude perceber um fraco, porém constante, pulsar de vida em seu interior... O inimigo do “Sempre-sobre-a-torre” ainda vivia... O navio afastava-se ainda mais depressa do porto, levado pelas correntezas do mar. Os revoltosos no porto estavam sendo contidos pelos soldados de Ancar e não estavam mais preocupados em salvar um navio avariado como aquele; preocupavam-se mais com suas próprias vidas. Deste modo o “Cavalo negro” seguiria à deriva... Achei que se o deixasse ir talvez ele tivesse algum futuro... Talvez... Mas eu precisava saber onde estavam as duas... Então tentei acorda-lo. Mas nada fazia efeito sobre ele. Não estava morto mas dormia como uma pedra, ou até mais que uma pedra; dormia como uma sombra dentro de uma pedra. Um vulto que nem mesmo minha voz parecia alcançar... Minha última esperança havia se apagado... — Ela estremeceu antes de prosseguir, como se tentasse evitar prosseguir a narrativa. Mas continuou assim mesmo.
— Notei pela primeira vez que o “Cavalo Negro” não estava sozinho na pequena embarcação... Além dos vários mortos havia mais uma criatura viva que eu não havia notado antes... Uma criatura que vestia pele e carne de gente e mesmo assim não era gente... Fazia parte da Estrela Negra... Ele também estava desacordado, como o “Cavalo Negro”. Eu vi, chegando mais perto, que ambos possuíam o “sinal do cadeado” em seus corpos. Eu não sabia o que havia acontecido para o “Cavalo Negro” ter sido marcado com um sinal, que ainda estava muito fraco nele, mas ganhava força e forma rapidamente... Eu sentia que aquilo não era bom... Nada bom... Aquele era o cadeado... Um dos sinais de Araór Vegus... Um dos sinais malditos... Malditos... E por isso eu decidi... Naquele instante... Apesar do medo... Decidi... Levei a criatura desacordada que habitava a pele e a carne de uma pessoa até longe no mar... Até longe nos céus... Me surpreendi com o peso de seu corpo... Ou talvez fossem suas roupas... Ele parecia estar pesando o equivalente a dezenas de pessoas... No entanto, apesar daquele feitiço; se é que aquilo era um feitiço, eu consegui carregar aquele ser. E o joguei nas turbulentas águas do mar... Não sabia se aquilo mataria a criatura... Mas era só o que eu podia fazer... — Ela foi falando mais devagar. Mais baixo. Seu ouvinte seguia-a em sua narrativa.
— Na verdade havia mais uma coisa para fazer... — Falou ela com o corpo tremulo. O busto à mostra deixava ver o peito subir e descer de forma acelerada, denunciando a respiração afetada. Era como se ela estivesse se esforçando muito. — O “Cavalo Negro” também havia sido marcado com uma daquelas coisas... Eu devia tê-lo jogado no mar como fiz com a outra criatura. Pois se ele despertasse poderia não ser mais o “Cavalo Negro”... Poderia ser um deles... Um maldito... Poderia ser a Estrela Negra... Mas ele era o “Cavalo Negro”... O inimigo do “Sempre-sobre-a-torre”... O inimigo do meu carrasco. Então deixei-o em seu caixão de madeira e chamas... Deixei-o para que a sorte ou o azar o acolhessem na linha do horizonte. — Ela esperou alguns instantes. O corpo ainda tremia como se ela estivesse ansiosa. Como se esperasse algo. Mas não era possível dizer se ela desejava ou temia este algo. Quando percebeu que o que quer que fosse não viria o seu corpo parou de tremer lentamente. Sua respiração se normalizou. E a narrativa prosseguiu.
— Estava tudo acabado... As duas sumiram... O “Cavalo Negro” estava além do alcance de minha voz... E eu achei que só me restava partir... Deixar meu posto de observação para ir relatar tudo ao “Sempre-sobre-a-torre”. Para lhe cortar o coração com aquela noticia. A noticia de como todos haviam se perdido. — O ouvinte não a interrompeu, mas aproximou-se dela, encarando-a nos olhos e em resposta ao seu olhar ela prosseguiu rapidamente. — Mas estava enganada. Havia mais...
— Voltei o mais rápido que pude para o centro de Ancar, procurei nos arredores e não vi sinal da “Filha” ou da “Filha-da-filha”... Esperava que a Estrela Negra também não as tivesse encontrado... Então continuei procurando... Procurando... Procurando... Procurando... E foi então que vi... A “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre” dirigia-se para um pequeno navio escondido longe do porto de Ancar e do local do ataque dos rebeldes... — Ela interrompeu brevemente seu relato. Foi um silencio pontual. Mas um silencio que pareceu pesar sobre o ouvinte como uma eternidade em uma sala de torturas. Então ela prosseguiu...
— Mas não compreendi o que vi... Ela, a “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre” seguia seu caminho deixando atrás de si um rastro de mortos... Eram todas as pessoas que não eram pessoas... Eram os corpos da Estrela Negra, todos dilacerados... E ela; a “Filha” seguia resoluta para o navio... Sozinha! Completamente sozinha... Mas para dizer a verdade ela não parecia ela. Tentei me aproximar para ver melhor... Tentei concentrar-me totalmente na figura da “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre” indo embora... Mas... — Ela foi obrigada a se deter naquela parte do relato, como se a lembrança a machucasse de alguma forma. — Ela lançou-me um olhar aterrador; ela simplesmente sabia onde eu estava, sabia que eu a estava observando atentamente... E um relance daquele olhar foi o suficiente para eu compreender... Por detrás daqueles olhos não havia mais a “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre”... O que eu vi ali foi uma grande sombra... Foi “A Grande Sombra”... A Sombra mais profunda... E bastou aquele relance de olhar para me fazer despencar dos ares... E por pouco retomei o controle... Por pouco escapei da queda e desviei o olhar daquela criatura que caminhava sobre o mundo vestindo a pele e a carne da “Filha”... E vestindo aquela outra parte do corpo dela... Aquela parte que as pessoas não podem ver... Aquela parte que faz da “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre” uma criatura diferente das demais pessoas... — Ela parou novamente. Outro silencio pontual. Dirigido propositalmente para o seu ouvinte. No entanto, este silêncio não foi quebrado por ela, foi o seu ouvinte quem falou desta vez... Estarrecido...
— A Estrela Negra encontrou o que procurava... Ou melhor... Encontrou algo quando achava estar procurando outro algo. — Falou ele. — Pois eles procuravam um limite, procuravam algo que cabia em sua compreensão como se estivessem procurando apenas uma pequena parte de uma figura maior... Como se estivessem procurando um conjunto de números finitos quando na verdade o conjunto em si é bem maior... Talvez infinitamente maior... Tolos! — Concluiu ele falando mais para si mesmo do que para ela, que apenas permaneceu em silêncio, parecendo ainda estar em um transe profundo. — Prossiga... — Disse ele e ela obedeceu.
— Tentei então encontrar a criança... A “Filha-da-filha”... A procurei... Procurei... E procurei... Mas não encontrei... Não havia nenhum sinal dela... Em parte alguma... Nem havia sinal do seu corpo... Nem sinal do seu pulso de vida... Era como se ela houvesse sido esquecida pelo mundo... Completamente esquecida... — Ela parou novamente. Parou porque o ouvinte havia fechado os olhos; fechou-os momentaneamente como que querendo esconder o que ia em seu intimo. Quando ele reabriu os olhos, encarando-a novamente, ela prosseguiu, dando continuidade a sua narrativa que apesar de mecânica parecia esconder emoções que somente ela devia conhecer. Ela e ele; o seu ouvinte.
— Subi ao último dos céus do mundo... Acima de todas as nuvens... Não tinha coragem de olhar na direção do outro pequeno navio que desaparecia na névoa do oceano, carregando aquela “coisa”, carregando o sangue do “Sempre-sobre-a-torre”, deixando para trás os revoltosos que incendiaram Ancar e que agora estavam enfraquecidos com a partida dos seres malignos que mais cedo os apoiaram na luta... Os insurgentes escravos e plebeus não imaginavam que aquelas criaturas possuíam seus próprios interesses... Talvez aquela gente nem soubesse o que eles eram realmente... Foram usados por eles da mesma forma que o Imperador contra o qual se rebelaram os usava e agora pagavam por sua ignorância... Estavam sendo caçados e mortos da mesma forma que as pessoas costumam caçar e trucidar uma praga que ataca seus rebanhos e suas plantações... — Ela terminou esta frase com um suspiro. Parecia estar exausta.
— Cravei meus olhos na direção das Colinas Brancas... E resoluta a não parar até que aqui eu chegasse... Eu vim... Tão depressa quanto o vento que me carregou, para dar-lhe o testemunho... O testemunho do dia em que Araór Vegus encontrou uma forma de caminhar novamente sobre este mundo... Usando o corpo da “Filha” do “Sempre-sobre-a-torre”... A “Filha” do “Assombrado”... — Finalizou ela fazendo um esforço tremendo para esticar os braços em direção ao seu ouvinte. Este segurou suas mãos e disse...
***
— Você me deu o seu testemunho. E eu lhe darei longevidade. Vá e reveja sua família. Reveja sua terra. Aproveite cada instante, pois em breve você viajará novamente. — O ouvinte tinha uma voz velha, porém ela era tão velha quanto era poderosa e cheia de vida; uma voz controversa. Ao comando do ouvinte ela recolheu suas mãos de donzela junto ao peito. Suas mãos de donzela apesar de delicadas eram também armas letais; suas unhas pareciam as pontas de adagas de chumbo. Ela ficou ali, de cabeça baixa, com os longos cabelos negros e lisos escondendo seu rosto de mulher na flor da idade.
O ouvinte virou-se e caminhou até o recipiente metálico que ainda estava sobre o fogo crepitante. Ele jogou alguma coisa em seu interior e repentinamente uma fumaça forte, com cheiro acolhedor e materno subiu sobre o topo do torreão.
Aquela que havia narrado o relato até agora levantou a cabeça de vagar. Estava voltando a si. Estava inalando aquela fumaça e recuperando as forças que lhe haviam sido tomadas. Então começou a falar. — O “Assombrado” zomba de mim. Ele amaldiçoa a nós. Amaldiçoa nosso povo à sua existência inacabável... Maldito seja... Onde está ele? Onde maldito “Assombrado” está? — Indagou ela. Sua voz estava tão horrível quanto estava bela há alguns instantes; o que outrora era encantadora tornou-se aterradora e hedionda. — Onde está? — Persistiu ela, furiosa.
O ouvinte lhe deu as costas rindo alto, um riso velho e sobrenatural que a amedrontou. Mas apenas por um breve instante. Ela disparou em direção a ele com as garras letais prontas para dilacerar o que quer que encontrasse em seu caminho. Ele por sua vez caminhava tranquilamente em direção à borda do torreão como se não possuísse medo de cair daquela altura toda.
Então ela saltou sobre ele e ele... Simplesmente desapareceu no ar enquanto ela despencou no vazio. Despencou vários passos em direção ao solo, mas depois contorceu seu corpo em pleno ar e abriu suas poderosas asas, disparando em seguida na direção da mata ao redor daquele lugar, gritando xingamentos e maldições naquela voz horrível, metaliza e rascante como a voz de um fantasma subterrâneo.
Sobre o torreão restaram apenas a fumaça, um recipiente metálico, cinzas, o vento que parecia soprar eternamente naquelas alturas, e aquele vazio absoluto de vida; um vazio paradoxal que só se faz notar quando não há uma única criatura capaz de notá-lo.
***
Continua...
Se você gostou da história, vai gostar de ler também o post a Cela; que também faz parte de O Ventre de Pedra.