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As trevas engolem a cidadela marítima de Ancar
forças sinistras espalham caos e destruição por onde passam
Em A Queda da Cidadela Marítima, conhecemos o relato sinistro sobre a trágica queda de uma cidadela marítima que foi engolida em uma única noite por forças malignas além da compreensão humana.
Nesse post apresento o capítulo 1 (A Queda da Cidadela Marítima) do ciclo "O Ventre de Pedra" da saga "O Governador das Masmorras". Esse é um projeto antigo, mas que ainda está em andamento. Ele faz parte de um projeto literário maior, que inclusive já teve algumas publicações (como O Leão de Aeris e Os Demônios de Ergatan; que será repúblicado como "Os Segredos dos Suna Mandís" em mais de uma parte). No momento, o material que compõe todas as sagas dentro desse universo; esse mundo estranho, estão sendo revisados para que contos, novelas e até romances sejam lançados (em um futuro que, apesar de incerto, espero que não esteja tão longe). Para conhecer mais sobre esse projeto, eu indico um post antigo e também indico um post mais atual aqui do blog: em "O Povo das Mandalas Errantes" eu falo sobre os trabalhos mais recentes desse universo e explico um pouco também sobre o andamento desse projeto.
Agora, deixo vocês com primeiro capítulo narrado em primeira pessoa por um personagem que foi a minha primeira experiência em contar histórias sobre um ponto de vista não humano e que eu viria a adotar novamente em outros trabalhos.
Após a leitura, recomendo o post A Misteriosa Espiã Alada e o post A Cela; que também faz parte de O Ventre de Pedra.
Cap. 1 - A Queda da Cidadela Marítima
— As cinzas levantaram-se com o vento naquela manhã...
— Eu testemunhei o que aconteceu do alto dos céus...
— Não pude ver tudo... Não pude ouvir tudo... Ainda assim tentei ver e ouvir tudo o que fosse possível...
— Tentei até mais... No entanto o que aconteceu estava fora do meu alcance...
A voz dela era linda; a voz de uma jovem donzela inebriante e sedutora. No entanto ela falava como se estivesse em um transe. Como se não possuísse consciência do que estava dizendo. Ela prosseguiu...
— Os navios inimigos se aproximaram do porto durante a madrugada sem que ninguém os notasse; nem os sentinelas e nem eu percebemos um sinal sequer das embarcações nas águas do mar durante as horas de escuridão. — Ela sorriu enquanto falou, mas não era um sorriso agradável. Era um sorriso carregado de desdenho. Mas era difícil imaginar a quem aquele desdenho todo se destinava.
— Foi como se os navios inimigos estivessem navegando envoltos em um véu que os tornava invisíveis... Se fossem somente inimigos comuns; um bando qualquer de saqueadores, eles não contariam com um artificio tão engenhoso... Havia algo errado... Muito errado... Naquela manhã traiçoeira... E eu não fui capaz de perceber... Não fui capaz... — Ela terminou a frase quase sussurrando. Escorria suor do seu rosto. Ela ficou em silêncio durante alguns instantes, mas aqueles instantes pareciam uma eternidade para ela e também para aquele que a ouvia atentamente.
— O ataque veio... Rápido e violento... Os canhões do inimigo dispararam impiedosamente contra os fortes costeiros e contra um vilarejo a beira mar; alvos pegos totalmente desprevenidos. Um caos completo de explosões e chamas. Em seguida os navios aportaram e seus tripulantes rumaram como bárbaros selvagens carregando espadas e pistolas. — Ela retomou sua narrativa. Falava como se estivesse reportando um relatório para o seu ouvinte. A voz doce e sedutora não tinha emoção. De certa forma aquilo não deixava de ser um relatório; um relatório na forma de uma testemunha viva.
— Os soldados de Ancar responderam enviando quase todo o seu contingente para o porto, com isso conseguiram refrear a invasão não deixando os inimigos alcançarem as rotas que levavam até o centro da cidadela... — Ela interrompeu-se momentaneamente antes de prosseguir. — Tolos e presunçosos... Acharam que o inimigo era o que o inimigo mostrava ser... Foi o que os condenou e condenou a todos nós. — Ela balançava a cabeça em negativa enquanto falava. Mas os seus olhos pareciam não seguir o movimento da cabeça, continuavam fixos no ouvinte logo a frente. Na verdade os olhos dela nunca desviavam dele. Ela nem mesmo piscava. — No entanto... — Prosseguiu ela.
— Ancar foi surpreendida novamente... O ataque veio de onde menos se esperava... Escravos e plebeus se rebelaram aproveitando que àquela altura o centro urbano contava com apenas um pequeno número de soldados para proteger o centro; a população estava a mercê da fúria dos rebeldes que empunhavam ferramentas como armas e também algumas pistolas e alguns barris de pólvora que só poderiam ter chegado às suas mãos através do contrabando... Tudo planejado... — Seu corpo estremeceu brevemente enquanto ela tentava articular a próxima palavra. — E Ancar mordeu a isca... E eu fui enganada... Enganada... Enganada... Juro que fui enganada... — Completou ela e mesmo que sua voz não possuísse nenhuma nota de emoção era possível deduzir que em seu íntimo haviam emoções que a atormentavam profundamente... A maior delas talvez fosse o medo.
— Aflita eu foquei toda a minha atenção na casa em que as duas estavam; a “Filha” e a “Filha-da-filha”... Elas estavam em perigo... — Disse ela e após isso parou de falar enquanto um sorriso se formava em sua face, mas antes mesmo do sorriso se completar um leve tremor devolveu a ela a expressão entorpecida, alheia e mecânica. E sua narrativa prosseguiu.
— A rebelião dos escravos começou em pontos espalhados, mas ela seguia um padrão que os conduziu para a praça principal. De lá o caminho dos rebeldes conduziria aonde eu temia... Ao encontro delas... Sim eu temia... Mas não por elas... Temia a punição por não tê-las protegido... Ah se eu temia. — Enquanto ela falava o ouvinte reconstruía em sua mente os eventos narrados, imaginando os detalhes, reconstruindo as entrelinhas, recriando o cenário e o ambiente. Era quase como se ele houvesse estado lá, na pele dela ou talvez fosse até mais real que isso, era como se ele se transportasse para aquele dia e lugar no passado através da narrativa dela.
— A “Filha” e a “Filha-da-filha” do “Sempre-sobre-a-torre” estavam no jardim quando soaram os sinos e as cornetas de alerta de sua casa. As duas; mulher e criança, fugiram para o interior da construção que era semelhante a um pequeno castelinho cuja maior torre erguia-se trinta passos em direção ao céu... — Sua voz quase sumiu ao terminar a frase. Ficou mais alguns instantes em silencio. O peito arfava como se estivesse fazendo um enorme esforço. Aos poucos a respiração normalizou-se e ela abriu os lábios novamente para falar.
— Instantes após elas terem entrado na casa, eu perdi o rastro das duas... Não as via ou ouvia... Algo estava errado, pois se eu era capaz de ver e ouvir até mesmo os vermes rastejando pela terra, porque eu não era capaz de ouvi-las no interior da casa? Aquela casa que eu vinha vigiando há anos... — Ela levantou o braço direito de vagar como se estivesse tentando alcançar algo, mas a meio caminho um tremor percorreu seu corpo e o braço despencou frouxamente ao lado do corpo. O suor escorria pelo seu braço e pingava das pontas de seus dedos e de suas unhas compridas como pontas de adagas.
— Era como se as duas houvessem se afastado para um outro domínio dentro daquela casa... Que até então parecia-me; vista de fora, uma casa normal. Uma construção de pedra que as pessoas constroem para não precisarem dormir ao relento ou em cavernas e tocas como outras criaturas faziam... — Um sorriso torto perpassou seu rosto novamente. Um sorriso rápido, desagradável e desdenhoso, após o qual sua face tornou-se novamente inexpressiva. — Fui enganada duas vezes... Duas vezes... Se não mais... — Disse após um breve instante.
— O “Cavalo negro”; o inimigo do “Sempre-sobre-a-torre”, não estava com elas, apesar de morar na mesma casa... Ele havia saído cedo; como sempre fazia antes das primeiras luzes de Aruzan despontarem no leste, montado em um Belusco Negro. Foi para o forte no qual exercia o trabalho de oficial comandando um grupo de soldados que se ocupavam da patrulha dos portos e das praias da ilha de Ancar. — O vento soprava forte fazendo seus cabelos negros esvoaçarem. Seu ouvinte a olhava atentamente, nada mais existia para ele; apenas o som daquela voz que seria capaz de enfeitiçar a qualquer outro. Menos a ele.
— Provavelmente o “Cavalo negro” estava em meio à multidão de soldados que digladiavam com os invasores no porto... Provavelmente ele nem imaginava o que se passava na casa onde estavam as duas... Provavelmente... Provavelmente... Provavelmente... Provavelmente... — Ela ficou repetindo aquela última palavra por um bom tempo. Seu ouvinte não a interrompeu em nenhum momento. Por fim ela caiu no silêncio e desta vez os seus olhos se fecharam, como se ela houvesse caído em um sono languido após um grande esforço exaurir suas forças. Um novo momento de interrupção no relatório; mas um momento mais longo, mais consistente, como uma página em branco no meio da narrativa. Era como se ela precisa-se daquele tempo para poder prosseguir. Ou talvez fosse o seu ouvinte que precisa-se daquele tempo, daquela página em branco, na qual poderia ordenar os eventos narrados até então.
***
Em dado momento o ouvinte moveu-se. Foi como se uma estátua houvesse se movido; uma pedra que repentinamente percebesse que possuía vida. Ele aproximou-se dela... Tocou levemente o seu queixo erguendo sua face e disse... — Continue. –Ela abriu os olhos que tornaram a petrificar-se ao olharem nos olhos dele e continuou...
— Enquanto eu vasculhava cada detalhe da luta que começava ao redor da casa, eu notei que em meio aos revoltosos haviam seres que não eram pessoas... Apenas se pareciam com estas... Provavelmente eram eles os responsáveis por driblar minha vigília. Espíritos corrompidos que vestiam a pele e a carne de pessoas. Estavam marcados com os sinais “Dele”... Sinais que esconderam cautelosamente de meus olhos até aquele momento... Sinais que esconderam dos olhos normais dos seres deste mundo... Os sinais da “Grande-sombra-que-vomita-caos”. Mas naquele momento eu os notei, pois eles tiraram seus disfarces, tiraram seus mantos inescrutáveis... Notei os seus sinais... As marcas de Araór Vegus... Sim, eu notei... — Ela ainda falava como se estivesse em um transe, mas seu corpo estremecia ora ou outra. Era como se o seu corpo estivesse procurando uma forma de canalizar as emoções que ela revivia enquanto falava... Enquanto transformava em narrativa o que havia testemunhado.
— Eu sabia o que eles queriam... Só podia ser uma coisa... O raro sangue que a filha do “Sempre-sobre-a-torre” carregava em suas veias... Quando eu os vi me desesperei... Talvez já fosse muito tarde para fugir deles... Talvez fosse muito tarde para resgatar as duas; os tesouros do “Sempre-sobre-a-torre”... As duas que eram a família do “Cavalo negro”... Então aproveitei que os soldados que guardavam a casa da “Filha” e da “Filha-da-filha” estavam protegendo-a bem. Os revoltosos não eram soldados treinados e assim muitos deles caíram sobre as setas dos arcos e sob a lâmina dos experientes espadachins que o “Cavalo negro” pagava para protegerem sua casa e sua família... E “eles”... Os seguidores de Araór Vegus ainda não haviam se movido... Embora eu não soubesse o motivo de sua demora agradeci o tempo que me fora dado. — O ouvinte andou alguns passos para longe dela. Alguns passos para mais perto do fogo. Os olhos dela o acompanhavam aonde quer que ele fosse como se estivessem ligados a ele.
— Mergulhei dos céus para buscar as duas... O tempo urgia... Tinha que agir antes que “Eles” agissem... Entrei pela torre mais alta da construção... Poucos me viram entrar... Eu poderia ter desejado que aquelas criaturas não houvessem me notado, mas seria uma esperança fútil... Apenas me apressei. Busquei as duas por todos os cantos da construção. Fui atacada por alguns empregados da casa e os derrubei apenas com algumas notas da minha canção... Ainda assim, não encontrei nenhuma das duas... Era como se elas houvessem sido consumidas pela própria casa... Então forcei-os a falar... — Sua voz neste ponto reduziu-se a um sussurro. Seus lábios torceram-se em um sorriso de prazer. O ouvinte notou que era um sorriso de prazer mesmo que o tom de sua voz continuasse monocórdio e inexpressivo, pois ele conhecia a natureza dela. Conhecia-a melhor que ela mesma. — Eu os forcei. E eles resistiram. Resistiram até o final. Até que a morte os silenciou definitivamente. Ao menos para mim era um silencio definitivo. E isto só podia significar uma coisa... — Seu corpo estremecia levemente como se suas emoções estivessem lutando para se manifestar. — Eles realmente não sabiam onde elas... Onde elas... — Ela aumentava o tom de sua voz como se aquilo que ia em seu intimo fosse mais forte que as amarras que até então seguravam-na. — Eles não sabiam onde elas estavam... Os matei, mas eles não sabiam de nada... De nada... Nada... Hahahahaha... — Então ela se pôs a gargalhar. Ouvir aquela voz de donzela; voz delicada e encantadora, gargalhar daquela forma histérica e homicida era perturbador. Ou talvez o perturbador fosse saber que ela parecia estar se divertindo com o que ela havia admitido ter feito. E feito em vão. Mas não era assim tão simples. Havia algo muito mais perturbador no timbre daquela voz que conseguia ser inebriante mesmo quando era usada em uma só nota; a mais inexpressiva nota que possuía em seu repertório... Algo que ouvidos comuns não podiam distinguir, apenas temer.
— Então uma explosão ao longe chamou a atenção de todos, a minha inclusive... O som estrondoso de trovão vinha do porto, mas era um trovão de pólvora e chamas... — Prosseguiu ela, após sua gargalhada ser sufocada por um espasmo que a fez arfar como se houvesse levado um soco invisível em algum lugar de suas costelas.
— Voltei para a torre mais alta da casa, vasculhando cada recanto e cada cômodo sem encontrar nenhum sinal das duas... Pareciam ter sumido diante de alguma feitiçaria. Me lancei no ar e subi aos céus rapidamente... Vi um grande navio arder em chamas enquanto era tragado pelas águas revoltas do mar... Seus estandartes pertenciam aos Insurgentes... Provavelmente ele estava carregado de pólvora quando explodiu. — Enquanto ela falava o seu ouvinte mexia no recipiente metálico que ardia nas chamas crepitantes.
— Notei de relance outra cena próxima ao navio em chamas... E nesta cena o “Cavalo negro” já não lutava, havia caído em meio a um combate em um pequeno navio de assalto que agora seguia à deriva. Todos no navio pareciam mortos e seus corpos eram carregados pelas ondas para longe do porto... Como se estivessem em um enorme caixão em chamas flutuando sobre as águas errantes... Me perguntei se aquele seria o fim do “Cavalo negro”... Me perguntei se o “Sempre-sobre-a-torre” iria querer que fosse o fim dele... Do seu inimigo que também era o guardião de seus dois tesouros... — Seus lábios tentaram contorcer-se novamente em um sorriso malicioso, um sorriso desagradável. Mas a atenção que seu ouvinte depositava nela era tão grande que parecia impedi-la de qualquer coisa que não fosse respirar e falar.
— Por um breve instante achei que os revoltosos se sentiriam inibidos ao receberem a noticia de que um dos maiores navios de sua esquadra havia afundado. Mas havia me enganado... Os revoltosos ficaram ainda mais ferozes após a explosão... Ainda mais perigosos... Gritavam “É o sinal! É o sinal!”... E as sombras em meio a eles se mostraram... E eu descobri a qual séquito eles pertenciam, pois o “Sempre-sobre-a-torre” havia me alertado sobre os poderes deles... A Estrela Negra. — Ela suspirou ao término da frase e depois falou, frisando aquelas palavras...
***
Continua...
Se você gostou da história, vai gostar de ler também a continuação no post A Misteriosa Espiã Alada e também o post a Cela; que também faz parte de O Ventre de Pedra.